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A história de Manu, último capítulo

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Manu morreu. Teve uma vida breve a corça recém-nascida, encontrada em outubro no parque nacional do Iguaçu. Estava, na ocasião, levemente ferida e prematuramente separada da mãe por um predador frustrado – supostamente, uma irara. Em 17 de dezembro, uma jaguatirica atacou-a durante a noite, num ataque rápido e conclusivo.

Ela durou 55 dias. Mas deixou no parque uma extensa biografia, com seus passos documentados por fotografias, filmes e notas. Era um tema irresistível para quem a visitou na casa dos biólogos Marina Xavier da Silva e Alexandre Vogliotti, um lugar ermo, junto à usina hidrelétrica do rio São João, hoje sem máquinas e com ares de ruína. O endereço certo para quem prefere viver no mato, e quanto mais no mato melhor.

A casa fica na floresta que margeia o rio Iguaçu. Não tem vizinhos próximos. É o último lugar habitado da estrada de pedras brutas, estreita e sem acostamento, que desce da sede administrativa e termina, logo depois, numa pequena praia. É caminho de bicho e gente. Mais bicho do que gente.

Recolhida com dois diasde idade, Manu ganhou o nome de uma sobrinha de Vogliotti, que chegou ao parque como pesquisador de cervídeos e agora integra a equipe do projeto Carnívoros do Iguaçu, capitaneado por Marina Xavier da Silva, sua mulher. Ele passou do estudo das presas à intimidade com os predadores. E Manu se instalou bem no meio dessa encruzilhada vocacional.

O filhote passou as primeiras semanas num quarto da casa. Dormia em caixa de papelão, onde cabia de sobra. Mamava duas vezes por dia. Passava o dia num cercado, na sede do parque, acompanhando o casal durante o expediente. Todo fim de tarde, gastava as energias no quintal, aos saltos. Até que atravessou ao anoitecer o portão invariavelmente escancarado, embrenhou-se na floresta a poucos passos de casa e passou a dormir fora, como convem a um filhote de Mazama americana.

Mas essa história já foi contada aqui. A novidade veio dias atrás, num e-mail de Marina Silva que ensina, em poucos parágrafos e com muitos pontos de exclamação, um biólogo de campo a conciliar dever com sentimento. Começa informando que, “infelizmente”, naquela madrugada, “para nosso completo desespero, uma jaguatirica atacou” Manu.

Para que ninguém estranhe esse “infelizmente” e o “desespero”, é bom não perder de vista que se tratava de um animal que passara de doméstico em outubro para selvagem em novembro, sem deixar o convívio do casal. “Ela crescia linda”,  “continuava com suas brincadeiras vespertinas” e, naquela noite, “havia escolhido para dormir um lugar bem perto de casa”. E assim eles a ouviram  “berrar desesperadamente no momento do ataque”.

“Corremos, gritamos por ela, mas a jaguatirica foi rápida e precisa!” Expor-se aos riscos da vida silvestre, lembra Marina, fora “escolha nossa e dela”. Senão, teriam salvo uma corça incapaz de sobreviver no mato. Logo, destinada ao confinamento num zoológico, por falta de traquejo em seu habitat. “Foi duro ouvi-la berrar”. Mas “a natureza é dura mesmo”. E eles dois estão no Iguaçu a trabalho.

Meia hora depois de ouvir o berro, Vogliotti encontrou a carcaça de Manu “na borda da mata”. O casal suspeitou de cara que aquilo era obra de jaguatirica. E não podia dormir sem testar a suposição. Morta, Manu era isca. Armaram uma armadilha fotográfica perto do corpo. E a máquina flagrou o autor de volta à cena do crime. Era mesmo jaguatirica. “Um macho grande, cumprindo exatamente seu papel de predador”, comenta Marina em sua mensagem.

Dito isso, na frase seguinte ela exclama: “MALDITO!! Podia ao menos ser uma onça-pintada”. Onça-pintada, sim, é uma espécie cada vez mais rara no parque. Depois de uma temporada de visibilidade até excessiva em meados de 2010, quando todo nmundo parecia topar com ela, sumiu de uma hora para outra, driblando há meses os esforços dos pesquisadores que buscam por todo canto sinais de sua presença. Só neste fiunalzinho de dezembro deu o ar de sua graça, avistado por um funcionário da concessionária que explora o tutrismo nas Cataratas. Estava no quilômetro 26 da BR-469.

Restaram de Manu histórias e imagens. Vogliotti, “mesmo tendo uma boa experiência com os cervídeos”, admite que se surpreendeu “com o nível de interação que ela estabelecia conosco”, em “lutinhas, correrias, expedições pela mata, o rio Iguaçu e a cachoreira do São João”. Vogliotti acabou se convencendo de que Manu parecia “realmente se divertir nessas atividades”.

Ele pretendia estudar o processo de reintegração de Manu ao Iguaçu. Ela “continuava firme no objetivo de viver na mata”, ele escreve. “Ia lentamente ampliando seus horizontes. Revezava seus repousos/pernoites entre uns tres ou quatro sítios diferentes, que iam até perto da usina do São João, acima ou abaixo da trilha. Alguns eu nunca consegui localizar exatamente”.

Andava cada vez mais independente. “Pela manhã, ela atendia prontamente ao nosso chamado”, conta Vogliotti. “Mas, no fim da tarde, demorava mais a nos procurar e ficava um bom tempo consumindo brotos e folhas diversas, aqui e ali. Não cheguei a catalogar todas as plantas que ela vinha provando, mas sei de tres espécias, ainda não identificadas, pelas quais tinha predileção considerável”.

Às vezes, ele e Marina tinham que buscar Manu no mato “para mamar em tempo hábil”. E houve uma tarde em que desistiram de esperá-la. “Apareceu na tarde do dia seguinte, faminta, exigindo sua mamadeira aos berros (gravados pela Marina} e dando cabeçadas em quem quer que aparecesse à sua frente. Mamou um litro e meio em sequência”.

Tomava leite “de caixinha”, reforçado com “ração de gato moída”. Não se adaptou a “um sucedâneo comercial para bezerros”, que lhe provocou uma semana de diarréia – um indício do que esses bezerros desmamados andam engolindo por aí. A não ser por “breves lambidas” para saciar a curiosidade, Manu jamais bebeu água, “apesar de sempre demonstrar uma grande atração por ela. Quando íamos aos rios, ela sempre entrava na água até a altura da barriga”.

Costumava lambrer-lhes os braços. “Pensávamos que fosse pelo sal”, quase sempre deficitário na dieta da floresta. “Conseguimos um pouco de sal mineral (de uso pecuário) na intenção de suprir esses nutrientes, mas não teve o efeito esperado”. Ela provava a novidade e nem por isso deixava de lambê-los, talvez mais por “ interação social” que por necessidade “nutricional”. Lambia também a cabeça de Vogliotti. “E passava um bom tempo assim, se eu permitisse”.

O diário de Manu mal estava começando. E ficará para sempre incompleto. “Agora os fins de tarde custam muito a passar para a gente”, conclui Marina. Resta ao casal o consolo “de ver o parque funcionando”. Ou seja, com predadores e presas, como mandam os preceitos da conservação ambiental. “Mas podia não ser com a Manuzinha, não é mesmo???!!!”


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